segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Como Jesus cuidava das pessoas - Parte II





Cuidado-iconoclasta

O convite para se deixar amar nos leva para outra questão – qual é a imagem de Deus que construímos em nós? O terceiro mandamento, de não fazer para si imagens de Deus, tem de ser compreendido também simbolicamente: talvez não façamos esculturas de pedra ou metal, mas por vezes construímos imagens mentais de Deus mais duras que a rocha, tão frias que impedem que nós e as pessoas ao nosso redor percebam o amor do Pai.

No templo de Jerusalém, o lugar da morada de Deus – o Santo dos Santos – era completamente escuro. Lá dentro acontecia o encontro com o Sagrado. Será que conseguimos nos despir das velhas imagens e encontrar Deus totalmente no escuro? Foi o que Maria fez ao aceitar a proposta aparentemente “indecente” do anjo de ficar grávida enquanto noiva, e dizer: “Faça-se em mim segundo a tua palavra”.
Para experimentar a ausência de imagens, imagine-se caminhando de olhos vendados durante alguns minutos. Qual a sensação? Que temores e fantasias sobrevêm?

É difícil abrir mão das representações visíveis e seguras, ligadas a buscas de consolo durante o desamparo infantil. O convite da escuridão é para abandonarmos os canais de percepção costumeiros e nos abrirmos para outros modos de escutar, cheirar, tatear e saborear a presença de Deus.

O desafio maior será convidar outras pessoas a fazerem o mesmo, sem precisar que adorem a imagem mental esculpida por nós. Cuidar do desenvolvimento espiritual não é mostrar a nossa representação de Deus para o outro – isto somente Jesus podia fazer com fidedignidade – mas ajudar esta pessoa a se abrir para que Deus mesmo se revele pelo seu Espírito. O Espírito testifica ao nosso espírito quem é Deus.

Por causa destes riscos é muito arriscado nos fixarmos em práticas definidas por “aconselhamento” – estas implicam muitas palavras da nossa parte; Maria disse: que aconteça comigo o que o senhor acabou de me dizer, mostrando abertura para o novo.

Em psicanálise encontramos o alerta para que o terapeuta não influencie a pessoa com seu desejo, pois ela está depositando nele muito do seu amor e ódio infantil – está “transferindo” sobre ele estes sentimentos antigos, em clima de muita dependência. Isto coloca o terapeuta num lugar de muito poder e responsabilidade, e é preciso lidar com cuidado com este feixe de afetos.

Richard Rohr ressalta que o Deus-Pai do filho pródigo se parece mais com uma mãe – sempre disposta a acolher e perdoar. O autor conclui que muitas atitudes de Jesus se mostram mais próximas do universo feminino que do masculino, e justamente por aparecerem em um homem que é surpreendente: untar o olho do cego com saliva e barro, tocar a língua com saliva, contar parábolas sobre situações domésticas, como fermento, lâmpada, se alegrar com as vizinhas, acolher o filho que estava perdido.

Considerando esse resgate das dimensões femininas do Evangelho, podemos nos perguntar: permitimos que nossa ternura seja usada para expressar os aspectos mais maternos de Deus? Encarnamos o “Enxugar toda lágrima do olho”; o “colocar debaixo das asas como uma galinha”, o “deixar a alma amamentada”?

Deus nos encontra no escuro das crises, e também ele próprio, através do seu Filho, passou por situações de extrema escuridão e desamparo. Cabe perguntar: quando estamos conversando com uma pessoa feita à imagem e semelhança de Deus, deixamos que nossa fala e gestos remetem ao processo materno de cuidar? 

Pela psicanálise, este é o caminho para o desenvolvimento da capacidade de gerar vida. Para crescer, a menina precisa abandonar a fantasia infantil de casar com o pai, renunciando a tê-lo exclusivamente para si. Ali inicia um longo caminho que consiste em voltar-se novamente para a mãe e identificar-se com ela e com sua fecundidade. Desta forma, a menina solidifica as características femininas e forma a base para crescer como mulher e mãe.

Para o menino, o desafio consiste em renunciar a pretensão infantil de ter exclusividade do amor da mãe, e passar a se identificar com o pai e a desenvolver afetos mais maduros para com ambos. Alguns estudiosos apontam que o homem estaria mais inteiro se resgatasse sua ligação de ternura com a mãe, pois assim não precisaria mais desvalorizar o feminino como defesa perante ela. Se a característica divina de misericórdia se apóia na raiz da palavra útero, há um percurso a fazer no homem e na mulher, no resgate da capacidade procriadora e geradora.

Será que no desenvolvimento da fé madura conseguimos que a representação de Deus faça este longo caminho? Permitimos unir aos aspectos mais racionais também ao nosso afeto? Deixamos que nosso ser – tanto homem quanto mulher – se vista de misericórdia? Desenvolvemos estas qualidades de Jesus para que possamos cuidar amorosamente dos outros?

Nossa vida emocional está fundada em representações; o mandamento de não fazer imagens de Deus é uma tarefa impossível no plano mental, mas podemos nos conscientizar destas imagens ligadas à nossa história infantil e transformá-las, ao chegarmos sempre mais a Deus e conhecermos melhor quem ele é. Neste sentido ajudam fala e o conhecimento dos próprios impulsos e ideias. Tornar consciente nossa representação de pai e de mãe, inclusive com suas deformações, pode ser um fator libertador, pois possibilita mudanças nos relacionamentos com o mundo interno e externo.

O cuidado cristão, isto é, o cuidado em nome de Cristo, trabalha para tornar consciente o amor que se escondeu em meio aos temores infantis, e assim possibilita que se chegue a imagens de Deus menos ligadas aos medos da retaliação e castigo. O cuidado cristão quer ajudar a aprofundar a ligação com o ABA-PAI – paizinho.

O pastor Oscar Pfister comentava que o acolhimento amoroso de Deus na parábola do filho pródigo mostrava uma regressão para aquela fase infantil quando a criança ainda não é tratada segundo o bem ou o mal que praticou, mas simplesmente é tratada com amor e bondade. São tempos nos quais pai e mãe apenas cuidam, sem impor condições. Este cuidado básico, cuidado-matriz, se situa no tempo e no espaço próximo à matriz-útero, e é a forma que melhor representa a misericórdia de Deus.   

(Bíblia de Estudo - Conselheira)

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