Cuidado-iconoclasta
O convite para se deixar amar nos leva para outra questão –
qual é a imagem de Deus que construímos em nós? O terceiro mandamento, de não
fazer para si imagens de Deus, tem de ser compreendido também simbolicamente:
talvez não façamos esculturas de pedra ou metal, mas por vezes construímos
imagens mentais de Deus mais duras que a rocha, tão frias que impedem que nós e
as pessoas ao nosso redor percebam o amor do Pai.
No templo de Jerusalém, o lugar da morada de Deus – o Santo
dos Santos – era completamente escuro. Lá dentro acontecia o encontro com o
Sagrado. Será que conseguimos nos despir das velhas imagens e encontrar Deus
totalmente no escuro? Foi o que Maria fez ao aceitar a proposta aparentemente
“indecente” do anjo de ficar grávida enquanto noiva, e dizer: “Faça-se em mim
segundo a tua palavra”.
Para experimentar a ausência de imagens, imagine-se
caminhando de olhos vendados durante alguns minutos. Qual a sensação? Que
temores e fantasias sobrevêm?
É difícil abrir mão das representações visíveis e seguras,
ligadas a buscas de consolo durante o desamparo infantil. O convite da
escuridão é para abandonarmos os canais de percepção costumeiros e nos abrirmos
para outros modos de escutar, cheirar, tatear e saborear a presença de Deus.
O desafio maior será convidar outras pessoas a fazerem o
mesmo, sem precisar que adorem a imagem mental esculpida por nós. Cuidar do
desenvolvimento espiritual não é mostrar a nossa representação de Deus para o
outro – isto somente Jesus podia fazer com fidedignidade – mas ajudar esta
pessoa a se abrir para que Deus mesmo se revele pelo seu Espírito. O Espírito
testifica ao nosso espírito quem é Deus.
Por causa destes riscos é muito arriscado nos fixarmos em
práticas definidas por “aconselhamento” – estas implicam muitas palavras da
nossa parte; Maria disse: que aconteça comigo o que o senhor acabou de me
dizer, mostrando abertura para o novo.
Em psicanálise encontramos o alerta para que o terapeuta não
influencie a pessoa com seu desejo, pois ela está depositando nele muito do seu
amor e ódio infantil – está “transferindo” sobre ele estes sentimentos antigos,
em clima de muita dependência. Isto coloca o terapeuta num lugar de muito poder
e responsabilidade, e é preciso lidar com cuidado com este feixe de afetos.
Richard Rohr ressalta que o Deus-Pai do filho pródigo se
parece mais com uma mãe – sempre disposta a acolher e perdoar. O autor conclui
que muitas atitudes de Jesus se mostram mais próximas do universo feminino que
do masculino, e justamente por aparecerem em um homem que é surpreendente:
untar o olho do cego com saliva e barro, tocar a língua com saliva, contar
parábolas sobre situações domésticas, como fermento, lâmpada, se alegrar com as
vizinhas, acolher o filho que estava perdido.
Considerando esse resgate das dimensões femininas do
Evangelho, podemos nos perguntar: permitimos que nossa ternura seja usada para
expressar os aspectos mais maternos de Deus? Encarnamos o “Enxugar toda lágrima
do olho”; o “colocar debaixo das asas como uma galinha”, o “deixar a alma
amamentada”?
Deus nos encontra no escuro das crises, e também ele
próprio, através do seu Filho, passou por situações de extrema escuridão e
desamparo. Cabe perguntar: quando estamos conversando com uma pessoa feita à
imagem e semelhança de Deus, deixamos que nossa fala e gestos remetem ao
processo materno de cuidar?
Pela psicanálise, este é o caminho para o
desenvolvimento da capacidade de gerar vida. Para crescer, a menina precisa
abandonar a fantasia infantil de casar com o pai, renunciando a tê-lo
exclusivamente para si. Ali inicia um longo caminho que consiste em voltar-se
novamente para a mãe e identificar-se com ela e com sua fecundidade. Desta
forma, a menina solidifica as características femininas e forma a base para
crescer como mulher e mãe.
Para o menino, o desafio consiste em renunciar a pretensão
infantil de ter exclusividade do amor da mãe, e passar a se identificar com o
pai e a desenvolver afetos mais maduros para com ambos. Alguns estudiosos
apontam que o homem estaria mais inteiro se resgatasse sua ligação de ternura
com a mãe, pois assim não precisaria mais desvalorizar o feminino como defesa
perante ela. Se a característica divina de misericórdia se apóia na raiz da
palavra útero, há um percurso a fazer no homem e na mulher, no resgate da
capacidade procriadora e geradora.
Será que no desenvolvimento da fé madura conseguimos que a
representação de Deus faça este longo caminho? Permitimos unir aos aspectos
mais racionais também ao nosso afeto? Deixamos que nosso ser – tanto homem
quanto mulher – se vista de misericórdia? Desenvolvemos estas qualidades de
Jesus para que possamos cuidar amorosamente dos outros?
Nossa vida emocional está fundada em representações; o
mandamento de não fazer imagens de Deus é uma tarefa impossível no plano
mental, mas podemos nos conscientizar destas imagens ligadas à nossa história
infantil e transformá-las, ao chegarmos sempre mais a Deus e conhecermos melhor
quem ele é. Neste sentido ajudam fala e o conhecimento dos próprios impulsos e
ideias. Tornar consciente nossa representação de pai e de mãe, inclusive com
suas deformações, pode ser um fator libertador, pois possibilita mudanças nos
relacionamentos com o mundo interno e externo.
O cuidado cristão, isto é, o cuidado em nome de Cristo,
trabalha para tornar consciente o amor que se escondeu em meio aos temores
infantis, e assim possibilita que se chegue a imagens de Deus menos ligadas aos
medos da retaliação e castigo. O cuidado cristão quer ajudar a aprofundar a
ligação com o ABA-PAI – paizinho.
O pastor Oscar Pfister comentava que o acolhimento amoroso
de Deus na parábola do filho pródigo mostrava uma regressão para aquela fase
infantil quando a criança ainda não é tratada segundo o bem ou o mal que
praticou, mas simplesmente é tratada com amor e bondade. São tempos nos quais
pai e mãe apenas cuidam, sem impor condições. Este cuidado básico,
cuidado-matriz, se situa no tempo e no espaço próximo à matriz-útero, e é a
forma que melhor representa a misericórdia de Deus.
(Bíblia de Estudo - Conselheira)